A história de Chris McCandless ficou conhecida a partir da famosa reportagem publicada na Outside Magazine de janeiro de 1993 e se projetou para além do universo outdoor com a edição do livro traduzido para o português sob o título “Na natureza selvagem”[1], ambos de autoria de Jon Krakauer. O livro serviu de base para o filme homônimo, dirigido por Sean Penn, com trilha sonora magistral de Eddie Vedder, presente na playlist de 99% dos overlanders. Os dois últimos responsáveis absolutos pela popularidade que esse drama pessoal alcançou.

Texto escrito por Gustavo Amaral

Ano e meio depois do filme, lemos uma reportagem apontando que o número de pessoas que tomavam a Stampede Trail em busca do Magic Bus vinha aumentando significativamente. Já havia sinais bastante claros de que aquele ponto do mapa estava se tornando muito conhecido, visitado e caminhava a passos largos para se tornar uma atração do chamado turismo de aventura.

Em 2013 ouvimos tristes os primeiros relatos de que o ônibus vinha sofrendo vandalismo e que já não serviria de abrigo, como serviu ao Chris, posto que só lhe restavam poucas janelas intactas. Havia de tudo, desde visitantes “levando para casa” um “pedacinho” dele, até “iluminados” que resolviam dar sua contribuição com tiros na lataria e vidros, especialmente os caçadores freqüentes na região, que nunca gostaram de dividir aquele espaço com outro público.

Foto feita por Chris McCandless quando estava isolado no Magic Bus

Mas havia também quem por lá deixava uma homenagem ao Chris e à sua história, seja em escritos de agradecimento, seja em livros dedicados. Dentre elas, a placa fixada por seus pais e o gesto nobre de sua mãe, que teve a delicadeza e generosidade de deixar sob a cama um kit de sobrevivência, para que nenhuma outra vida se perdesse por ali. É certo que a maioria das pessoas levaram apenas boas lembranças, além da clássica fotografia na cadeira à frente do Magic Bus.

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De todo modo, com tamanho tráfego de pessoas, era previsível, não tardaria para surgirem os primeiros incidentes com aventureiros, impondo à administração do vizinho Parque Denali o peso das operações de resgate, inclusive seu custo operacional. Aos poucos o Magic Bus passou a representar um ônus às finanças e um risco efetivo à vida, tanto dos resgatados quanto dos profissionais envolvidos nas operações de resgate de maior complexidade. O Estado do Alaska registra 15 dessas operações entre 2009/2017, número que não inclui centenas de buscas realizadas pelos bombeiros locais em situações de menor gravidade/risco. Três mortes são debitadas à conta da visitação ao Magic Bus. Recentemente, um desses resgates foi noticiado por aqui, o do brasileiro Gabriel Dias da Silva, que saiu do local a bordo de um helicóptero em 15 de abril de 2020.

No dia 18 de junho de 2020 o inevitável aconteceu: O exército americano fez sua última operação de resgate na região, retirou de lá o próprio Magic Bus. As autoridades ponderaram e chegaram à conclusão de que ele deveria ser removido para um local seguro, classificando a medida como uma “solução respeitosa e econômica para essa situação”, segundo Corri A. Feige, comissário do Departamento de Recursos Naturais local.

Na contramão de toda essa balbúrdia em torno do Magic Bus temos a impactante história de Chris, narrada primorosamente no livro de Jon Krakauer. Ela costuma ser absorvida pelas pessoas de modo controverso. Já presenciamos discussões calorosas entre amigos para saber se Chris “fugiu covardemente” de seus dramas pessoais e familiares, ou teve “a coragem” de “viver na natureza selvagem” justamente por não se curvar ao estilo de vida moldado pela sociedade, que no país dele possui até nome: american way of life[1]. Tudo isso sem descartar a provável hipótese de que Chris, que contava seus 24 anos de idade, estivesse vivendo um processo doloroso de autoconhecimento, um ritual de passagem rumo à vida adulta. Dentre as diversas evidências nesse sentido, destacamos a seguinte frase de sua autoria: “tenho esta vida, que usarei para crescer. Quem eu era antes, já não me consigo lembrar”, a qual foi deixada em seus registros.

De qualquer forma, a odisséia de Chris retratada no livro autoriza várias leituras e pode servir de guia para o repensar de algumas das questões humanas mais profundas, como o sentido da existência, a razão pela qual fazemos o que fazemos e o preço que a liberdade de escolher o chão que pisamos pode nos cobrar. Na célebre frase de Kierkegaard: “Atrever-se, assumir riscos, é perder o pé momentaneamente. Não se arriscar é perder-se a si próprio para sempre”. A escolha de Chris por viver de modo diverso do que lhe estaria “predestinado” foi tomada à custa de muito empenho e esforço emocional, em torno da reflexão a respeito de temas relevantes e instigantes para os espíritos inquietos e inconformados, de certa forma comuns no universo dos praticantes de esportes e atividades outdoor.

Entretanto, o que nos move a escrever este texto é bem menos pretensioso, restringe-se em colocar luz sobre uma questão menor. O que fazia com que centenas de pessoas ao ano se propusessem a enfrentar uma trilha bastante exaustiva e desafiadora para chegar ao Magic Bus? Certamente não existe uma resposta, mas várias. Das possíveis, duas saltam aos nossos olhos.

Imagem: Seth Lacount/ Alaska National Guard Public Affairs

Pelos fatos ao seu redor, pelas marcas deixadas no ônibus por seus visitantes, e pelos registros que encontramos na web, não seria exagero afirmar que parte significativa destes chegavam ao local movidos por objetivos de menor relevância, norteados por valores muito distantes daqueles que Chris perseguiu em sua jornada. Aventureiros despreparados (com o perdão pela redundância), cujo maior objetivo nunca passou da postagem do “feito” para angariar likes e seguidores nas redes sociais se juntaram àqueles que buscavam o “troféu” como que uma chancela para poder entrar para o “clube dos aventureiros raiz”.

Tudo isso mostra muito do que a “aventura” em busca do Magic Bus se tornou. Um lugar remoto que seguiria desconhecido e anônimo não fosse a trajetória de Chris. Paradoxalmente, o Magic Bus se tornou um símbolo da antítese do que Chris acreditava, buscou e bancou para si, a ponto de pagar o preço com a própria vida.

Ao lado dos visitantes acima, seguramente, havia os que buscavam algo com outro significado. Para um viajante esse tipo de jornada costuma ser um trampolim para um processo interior de autoconhecimento e desenvolvimento pessoal. O fato da empreitada desafiar sua capacidade, exigindo dele resistência física, emocional e habilidades que não se conquistam em almanaque, é o motor para que as transformações da alma se acomodem durante o trajeto/processo. Como consta do dito popular: “É no andar da carruagem que as abóboras se ajeitam”. Um desfrutar interno da dor e da delícia que essa jornada provoca, e das transformações que esse processo de distanciamento é capaz de causar. Trata-se de algo acessado pela vontade de contato íntimo e contemplação da natureza, um instinto interior que remete à ideia de um resquício arqueológico da filosofia estóica[1] em nosso DNA, algo difícil de explicar em palavras, mas que mostra bem o que está por detrás da famosa frase de Exupéry: “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos”.

Imagem de divulgação do filme “Na natureza selvagem”

Para esses o Magic Bus nunca passou de um pretexto para encarar o percurso, superar os desafios, refletir sobre a própria existência e o que de valor há nela. Ou seja, uma referência para uma jornada que vai muito além da fotografia, do mero preparo físico ou dos equipamentos de ponta habitualmente utilizados. Quem conhece a história para além da vaga lembrança do filme, sabe que Chris não fez sua odisséia para ganhar notoriedade, tampouco para “postar em redes sociais” e muito menos para convencer alguém a se espelhar nele. Em suas palavras: “Mais que amor, dinheiro e fama, dai-me a verdade”.

Sabemos também que Chris não tinha nada de “aventureiro”. Possuía habilidades provadas de sobrevivencialismo e estava ali ciente do risco que assumira, da mesma forma que morreu ciente dos erros que cometeu, após sobreviver por mais de 100 dias isolado naquele ambiente para lá de hostil, contando com equipamentos mais que espartanos, o que é um feito digno de nota para qualquer praticante dessa modalidade. Conseguimos imaginar o desprezo com que ele olharia para o negócio que virou a exploração turística da sua história, com estabelecimento lucrando à custa de turista posando sentado diante de uma réplica do Magic Bus. Youtuber fazendo vídeo com figurinos, maquiagem e produção minuciosamente preparados para posar diante da nova atração do Alaska. Isso tudo, certamente, causaria asco em Chris!

Imagem de divulgação do filme “Na natureza selvagem”

É verdade que o resgate do Magic Bus parece estar longe de alterar o rumo dessa história. Ao contrário, muito provavelmente dará lugar a mais um capítulo dessa rasa exploração comercial de sua jornada. Mas talvez não seja de todo ruim. Afinal, para os caçadores de likes, muito provavelmente o ônibus estará em algum lugar seguro à beira do asfalto pronto para ser visitado, fotografado e explorado, servindo de cenário e “inspiração” às frugalidades da vida.

E o que resta para os que se dirigiam ao Magic Bus em busca daquela jornada de autoconhecimento e experiência reflexiva? Sem medo de errar, arriscamos dizer que resta intacto o que mais importa e o que não se resgata com as asas de um helicóptero: os valores, os questionamentos e as reflexões que nortearam Chris em sua jornada. Restará a busca pura e simples de um afastamento social, que nada tem que ver com vírus que nos preocupa nos dias atuais, mas com a necessidade de se encontrar a distância exata para que enxerguemos com foco aquilo que importa a nós mesmos. Para estes há um Magic Bus onde houver a natureza selvagem somada à conjunção de fatores desafiadores e remotos a serem conquistados à custa de coragem, suor, técnica e muito controle emocional.

O nosso Magic Bus seguirá “disponível para visitação” naqueles pontos remotos do mapa, aqueles que nos fisgam ao primeiro olhar. Não dependemos do ônibus para seguir ou escolher nossa jornada. Mesmo porque, sabemos bem que se estivesse entre nós, Chris não visitaria o que se tornou o Magic Bus em 2020!

R.I.P. Magic Bus!

Gustavo Amaral

 

[1]          Ed. Companhia das Letras: São Paulo, 1998.

[2]          “Estilo de vida americano” em tradução livre.

[3]          O Estoicismo é uma escola filosófica que prioriza as ações em detrimento do texto. Propõe um estilo de vida que busca compreender as regras da ordem natural, pugnando pela virtude vinculada à vida em perfeita sintonia com a natureza

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